quarta-feira, 3 de junho de 2009

"O BENEFÍCIO DA DÚVIDA"

A diminuição do número de cópias no Brasil revela uma situação constrangedora: na ausência de lançamentos nacionais, os filmes são lançados no eixo sul/sudeste para só depois marcar presença em outras cidades. Para piorar, lançamento somente com projeção digital é uma realidade dura para uma cidade com apenas uma sala equipada para este procedimento técnico que ainda está longe de democratizar seu uso, custo e benefício.
No mês de junho, o circuito alternativo em Belém recebe três títulos da última edição do Oscar: Rio congelado, Dúvida e O casamento de Rachel. Prova cabal de que há cinema além de Quem quer ser um milionário. Dúvida, de John Patrick Shanley, coloca na tela a primeira de todas as guerras: a guerra das idéias. Afinal, o que faz o discurso da irmã Aloysius Beauvier (Meryl Streep) tentar sobrepor-se à defesa do padre Brendan Flynn (Philip Seymour Hoffman) em meio às suspeitas da irmã James (Amy Adams) de uma atenção demasiada do padre a um aluno?
Independente da marcação teatral, dos fixos contra-plongées e de um certo humor que permeia um filme dramático que felizmente vai além da mera denúncia da pedofilia e suas implicações, “Dúvida” coloca em xeque a práxis de nossas certezas e a inabilidade de lidar com a falta de provas. O que vale é o poder de persuasão das imagens fotografadas por Roger Deakins, imagens que desafiam o olhar do espectador a sair da sala de cinema sem clímax que resolva as provocações do roteiro originalmente adaptado da peça homônima, nem anticlímax catártico ao doce sabor das certezas lineares.
Não se trata de oposição binária em que a feia neurótica (o dragão que tem fome), juntamente com a observadora obediente que delata apoiada em crenças humanistas (?) contra o padre arejado com idéias renovadas que marcam os anos 60 (como paradigma histórico e comportamental de mudanças no Ocidente). O ponto limite que revela a “natureza tal” do adolescente joga na cara do espectador a legitimidade ou não da suposta utilidade do amor perigoso e sujo do padre.
Onde o estado falha a religião impera na auto-delegação de leis atemporais e o reconhecimento empírico do que seja pecado num mundo em constante movimento que “nem os santos sabem ao certo a medida da maldade”, como está num clássico do rock Brasil.
No filme, a guerra das idéias tem efeito surdo, pois pecando pelo excesso a acusação não tem tolerância para o benefício da dúvida, já que a amplificação do escândalo teria conseqüências devastadoras para a instituição religiosa em pleno 1964. Sem a difusão do “problema” as portas da intolerância se instalam de uma vez, e a defesa se desdobra com a retórica de possibilidades discutíveis num duelo espetacular de mestres na arte de representação. No vale tudo de argumentos e contra argumentos, a posição nada confortável da irmã James, agente nada passiva da denúncia, agora corroída pela culpa em insônias intermináveis, a mesma que antes explicava o New Deal.
Dúvida faz parte daqueles filmes do Oscar 2009 sem muito barulho no ato do evento, mas que ratificam o poder do cinema de imagens e idéias, para ficarmos com os olhos bem abertos para outros títulos como: Der Baader Meinhof Komplex (Alemanha), Revanche (Áustria) e Departures (Japão).

Augusto Pachêco

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