quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009

"O CARREGADOR DE ALMAS"


"O CARREGADOR DE ALMAS"
Filme muito interessante e de temática reflexiva é este "O Carregador de Almas" (Soul Carriage/Inglaterra,China,2006) assinado por um diretor inglês estreante, Conrad Clark, 30 anos, além de roteirista de uma história de Saleh Karama., tendo no currículo a fotografia e produção de "Love Struck", de 2005.
A trama capta o dia a dia de uma construção civil na Kangai dos dias de hoje, onde circulam os operários das várias áreas. Um destes, Jaio (Yiung Chen), pede ao patrão uma pequena quantia para comemorar o seu aniversário. O patrão nega. A única forma de ganhar algum "extra" é conduzir o corpo de um colega fatalmente acidentado até a casa deste, numa província do interior. Dirigindo uma caminhonete, o rapaz passa mais de um dia para chegar ao endereço estipulado, mas encontra uma festa de casamento. O morto seria filho do dono da casa. Levado para reconhecer o cadáver, o pai acaba negando o parentesco ou mesmo o conhecimento de quem seja. A alternativa seria encontrar uma provável namorada do morto, que é cantora num bar próximo. Não é muito fácil achar esta figura, mas, ao encontrá-la, surge outra negativa. Embora amiga do morto reconhece não ter havido um relacionamento intimo entre eles. Mas informa que a namorada seria outra cantora, procurada e encontrada a qual indica a aldeia onde morariam os familiares do jovem. O próximo passo seria deixar o corpo com a mãe do rapaz, na região de montanha. O cansaço de um íngreme percurso de dois dias leva o carregador a uma estrada intransitável com máquinas obstruindo o espaço.
Tal como em "Em Busca da Vida" (Sanxia Haoren/China,2006) de Zhang Ke Jia, o país é um quintal de obras. Restaria abandonar a "encomenda" numa rua. Segue-se uma cena altamente dramática: bebendo "sakê" até se embriagar, o carregador conversa com o cadáver incitando-o a beber com ele. Resta um monologo que evidencia a solidão de quem fala. Está chovendo e a câmera, em plano médio, denuncia o sentimento de exclusão porque passa o homem que se julga um "morto em vida". No plano seguinte vê-se a caminhonete em movimento levando o morto, mas sem o motorista. Este fica observando, molhado. Daí segue-se uma comemoração chinesa em um edifício, com a objetiva descendo do alto ao térreo desse prédio.
Conrad Clark estréia com este filme que em nada revela a sua origem. A narrativa compassada, os enquadramentos e cortes econômicos (observem a seqüência inicial quando o operário pede dinheiro ao patrão, desdobrada em dois planos fixos: ele na sala do patrão, que é visto de costas, e uma tomada do lado de fora com o ângulo tomando os personagens numa extremidade do quadro) são recursos de linguagem que lembram a produção oriental. Percebe-se que o cineasta procurou valorizar a cultura da região onde se passa a história, privilegiando sempre os moradores das comunidades, focalizando com primazia o seu herói.
"Soul Carriage" é uma observação sutil de um solitário que adentra pelo terreno de "road movie" numa forma nada convencional. Há dois enfoques: o do transportador de cadáver e dos tipos que encontra por onde viaja, estes contornando o perfil do morto. No fim da jornada, que na realidade não chega a ser um fim, o carregador pensa em deixar a missão abandonando o corpo na estrada. Mas retrocede e acaba criando uma cerimônia exclusiva para si próprio e para o morto a quem oferece bebida numa cena pungente. O plano dos dois homens na chuva, o vivo e o morto, com o primeiro tentando uma comunicação com o segundo, é um dos mais pungentes do cinema moderno. Jaio quer que o colega beba com ele, forçando-o a sorver os goles da bebida. Possíveis lágrimas diluem-se na chuva.
A vida carregando a morte e conscientizando que o limite entre as duas partes se atenua na ciência de que nem uma nem outra, ou especificamente nem um nem outro personagem, gozam de estima de alguém, podem estar mortos sem que isso faça alguma diferença. Se todos procuraram esquecer o acidentado, o colega que passa com ele mais de dois dias sente-se também esquecido. Afinal, a festa de aniversário se transformou num longo e estranho funeral.
Conrad Clark foi premiado no Festival de San Sebastian. Mas seu filme foi pouco visto mundo afora. Ou pouco comentado. É uma dessas produções independentes que chegam aos festivais fora da órbita dos maiores do gênero existentes no calendário especifico. Em Belém ganhou uma exibição que seria pouco provável não existisse um programa como o recente MoviecomArte (e não houvesse o recurso da projeção digital, que dilui as despesas). Mesmo assim, mesmo com o nosso público sendo alvo de um régio presente, observei um fato curioso na sessão em que estive. Cerca de 12 pessoas deixaram a sala antes do final do filme. Exatamente seis casais. E uma platéia incomum, em numero, esteve presente. Talvez pensasse, pelo titulo, que se tratava de algum filme de terror onde um herói qualquer conduzia mortos-vivos na esteira dos de George Romero, ou, bem atrás no tempo, de Boris Karloff no clássico "Túmulo Vazio". Deparando com um filme lento, escuro, falado em chinês, com atores desconhecidos e ação minimizada pela observação psicológica dos tipos, o espectador achou que havia se enganado de sala. Os que ficaram até a fim saíram reclamando. Infelizmente cinema denso ainda é produto cultural endereçado à platéia restrita. O outro lado da medalha está em coisas como "Noivas em Guerra" , já comentado aqui.
Cotação - **** (Muito Bom).

Luzia Miranda Álvares
luziamiranda@gmail.com

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