"O SILÊNCIO DE LORNA"
Certo cinema segue amarras de uma narrativa propícia a uma trama delineada para a empatia do espectador. Desde que o espetáculo foi criado pelos irmãos Lumiere essa visão de episódios contados trouxe a atração/aproximação com o público. Mas a linguagem evoluiu, incorporaram-se novos conteúdos e hoje a forma de fazer cinema diferencia-se. O chamado “cinemão” já tem a fórmula própria e adequa o gosto do público em imagens com a abordagem tradicional de “contar história”. Isso é mais palatável ao sabor das platéias e mais rentável. E o pior, muito cobrado por esse público.
“O Silêncio de Lorna” (Le Silence de Lorna, - Bélgica, Reino Unido, França, 2008), escrito e dirigido pelos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne foge à regra. No enredo, Lorna (Dobroshi), imigrante albanesa, naturalizada belga devido o casamento com Claudy (Jérémie Renier), um viciado em drogas, se acha às voltas com um esquema de união, agora com um russo, arquitetado por um amigo taxista, cujo plano é eliminar o marido de Lorna com uma overdose e realizar o novo contrato dela com o pretendente. O sonho anterior da jovem de deixar o Kosovo obtendo a nova nacionalidade inclui, agora, montar uma lanchonete com o namorado real, Soko (Alban Ukjai), e para isso terá que conseguir recursos. Com a morte de Claudy, a transação quase fechada e os acordos negociados, Lorna descobre que está grávida e que não quer perder a criança. Uma reviravolta em sua pretensão dá outra tonalidade á racionalidade mantida na atitude anterior.
O processo narrativo do filme controla a forma de exposição dos personagens na trama. Explora o tipo frio de Lorna no relacionamento profissional, em casa com o marido, na transação com o taxista mafioso, observando o ir e vir das atitudes da jovem e quando nas seqüências finais do filme é supostamente definido o caráter da personagem num comportamento esperado, um último elemento consagra o imponderável. O que se supõe estar determinado apresenta mudanças.
Claudy mescla as imagens do tipo do viciado com aquele que tenta fugir das drogas na expectativa de conviver com a mulher que ama. Contudo, depende desta a nova vida (a premência em solicitar favores a Lorna, por exemplo, ou a decisão em isolar-se em casa para fugir aos traficantes que o perseguem), mas o esquema montado pelos mafiosos já decidiu seu destino. Se inicialmente é possível reconhecer a adesão de Lorna ao jogo para chegar a consecução de seu sonho após a união com o namorado, aos poucos vai sendo reprocessada essa atitude, seja como meio de ganhar a confiança de Claudy e conseguir o que quer, seja porque foi seduzida pela dependência dele a ela.
A narrativa é um modelo de economia de planos. Não há nada supérfluo e muitas vezes uma seqüência é interrompida para dar lugar à outra que começa “do meio”, uma das características da singularidade da produção. A exemplo: vê-se um plano aberto de Lorna despedindo-se do marido que compra uma bicicleta e sai pela rua. Ela corre atrás até certo ponto e se despede ciente de que vai encontrá-lo em casa depois do trabalho. O corte é para uma cena no IML quando Lorna reconhece o corpo de Claudy. O semblante fechado compreende o jogo dos mafiosos. E o que se segue é uma lenta ameaça, um processo que se corporifica a partir da reação da jovem albanesa ao novo contrato de casamento. Ainda mais quando sabe que a gravidez está fora do contrato. A opção por não abortar revela a outra Lorna, decidida a manter a lembrança da única pessoa que a amou, inscrita no seu corpo.
O final do filme foi motivo de reclamos tanto de críticos internacionais como de certo público. O fecho reticente seguiu o interesse dos Dardenne em afastar-se do esquema novelesco e ver a sua personagem fugir ou morrer. É esse o plano do imponderável, ou seja, o crédito das possibilidades de mudança na atitude das pessoas quando estas se singularizam por acreditarem na dignidade humana. Só no final Lorna percebeu a afinidade que tinha com Claudy e com indignação repele o novo crime. Embora se surpreenda com a overdose que matou o marido não havia sido tão incisiva contra a premeditação do assassinato. Não é a visão da culpa a pedir remissão a manutenção da gravidez, mas o respeito pelo que significou entre planos de armação comercial e o afeto percebido como fraqueza e instabilidade de um viciado que queria mudar de vida por causa dela. Esse é o mote que os irmãos diretores sempre revelam em seus filmes para tratar da condição humana e denunciar a mercantilização social. Conferir sobre isso a argumentação de seu filme “A Criança” (2005) quando o foco se dá sobre um casal jovem e o padrão “normal” de sentimentos desconectados da condição de serem pais, com uma negociação em jogo. Entre a racioalidade das les sociais e a forma de vivência dos humanos, o caráter anárquico não os despoja do afeto e do desejo.
O filme não seria o mesmo sem o desempenho da Arta Debroshi aqui em seu terceiro filme como intérprete. Ela impressiona a partir de uma máscara que traduz os sentimentos, mesmo que a pessoa em foco, no fim de contas, sinta a ambigüidade e, como referi acima, fique no ângulo do “no trespassing” sobre Lorna. A exemplo: são significativos os planos em um bar onde ela é forçada a dançar com o russo que lhe destinam para segundo marido. Ao se levantar da mesa e sair à pista com ele, ora em close, ora em plano médio, seguindo-se o momento que fala de sua suposta gravidez, tudo se concentra mais nas expressões do que nas palavras. E o filme inteiro é trabalho nas imagens. A câmera se movimenta de uma forma tão singela que o espectador, acompanhando a trama, nem sabe distinguir o perfil das tomadas, sentindo apenas os cortes bruscos.
Cotação: **** (Muito Bom)
Luzia Miranda Álvares
Certo cinema segue amarras de uma narrativa propícia a uma trama delineada para a empatia do espectador. Desde que o espetáculo foi criado pelos irmãos Lumiere essa visão de episódios contados trouxe a atração/aproximação com o público. Mas a linguagem evoluiu, incorporaram-se novos conteúdos e hoje a forma de fazer cinema diferencia-se. O chamado “cinemão” já tem a fórmula própria e adequa o gosto do público em imagens com a abordagem tradicional de “contar história”. Isso é mais palatável ao sabor das platéias e mais rentável. E o pior, muito cobrado por esse público.
“O Silêncio de Lorna” (Le Silence de Lorna, - Bélgica, Reino Unido, França, 2008), escrito e dirigido pelos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne foge à regra. No enredo, Lorna (Dobroshi), imigrante albanesa, naturalizada belga devido o casamento com Claudy (Jérémie Renier), um viciado em drogas, se acha às voltas com um esquema de união, agora com um russo, arquitetado por um amigo taxista, cujo plano é eliminar o marido de Lorna com uma overdose e realizar o novo contrato dela com o pretendente. O sonho anterior da jovem de deixar o Kosovo obtendo a nova nacionalidade inclui, agora, montar uma lanchonete com o namorado real, Soko (Alban Ukjai), e para isso terá que conseguir recursos. Com a morte de Claudy, a transação quase fechada e os acordos negociados, Lorna descobre que está grávida e que não quer perder a criança. Uma reviravolta em sua pretensão dá outra tonalidade á racionalidade mantida na atitude anterior.
O processo narrativo do filme controla a forma de exposição dos personagens na trama. Explora o tipo frio de Lorna no relacionamento profissional, em casa com o marido, na transação com o taxista mafioso, observando o ir e vir das atitudes da jovem e quando nas seqüências finais do filme é supostamente definido o caráter da personagem num comportamento esperado, um último elemento consagra o imponderável. O que se supõe estar determinado apresenta mudanças.
Claudy mescla as imagens do tipo do viciado com aquele que tenta fugir das drogas na expectativa de conviver com a mulher que ama. Contudo, depende desta a nova vida (a premência em solicitar favores a Lorna, por exemplo, ou a decisão em isolar-se em casa para fugir aos traficantes que o perseguem), mas o esquema montado pelos mafiosos já decidiu seu destino. Se inicialmente é possível reconhecer a adesão de Lorna ao jogo para chegar a consecução de seu sonho após a união com o namorado, aos poucos vai sendo reprocessada essa atitude, seja como meio de ganhar a confiança de Claudy e conseguir o que quer, seja porque foi seduzida pela dependência dele a ela.
A narrativa é um modelo de economia de planos. Não há nada supérfluo e muitas vezes uma seqüência é interrompida para dar lugar à outra que começa “do meio”, uma das características da singularidade da produção. A exemplo: vê-se um plano aberto de Lorna despedindo-se do marido que compra uma bicicleta e sai pela rua. Ela corre atrás até certo ponto e se despede ciente de que vai encontrá-lo em casa depois do trabalho. O corte é para uma cena no IML quando Lorna reconhece o corpo de Claudy. O semblante fechado compreende o jogo dos mafiosos. E o que se segue é uma lenta ameaça, um processo que se corporifica a partir da reação da jovem albanesa ao novo contrato de casamento. Ainda mais quando sabe que a gravidez está fora do contrato. A opção por não abortar revela a outra Lorna, decidida a manter a lembrança da única pessoa que a amou, inscrita no seu corpo.
O final do filme foi motivo de reclamos tanto de críticos internacionais como de certo público. O fecho reticente seguiu o interesse dos Dardenne em afastar-se do esquema novelesco e ver a sua personagem fugir ou morrer. É esse o plano do imponderável, ou seja, o crédito das possibilidades de mudança na atitude das pessoas quando estas se singularizam por acreditarem na dignidade humana. Só no final Lorna percebeu a afinidade que tinha com Claudy e com indignação repele o novo crime. Embora se surpreenda com a overdose que matou o marido não havia sido tão incisiva contra a premeditação do assassinato. Não é a visão da culpa a pedir remissão a manutenção da gravidez, mas o respeito pelo que significou entre planos de armação comercial e o afeto percebido como fraqueza e instabilidade de um viciado que queria mudar de vida por causa dela. Esse é o mote que os irmãos diretores sempre revelam em seus filmes para tratar da condição humana e denunciar a mercantilização social. Conferir sobre isso a argumentação de seu filme “A Criança” (2005) quando o foco se dá sobre um casal jovem e o padrão “normal” de sentimentos desconectados da condição de serem pais, com uma negociação em jogo. Entre a racioalidade das les sociais e a forma de vivência dos humanos, o caráter anárquico não os despoja do afeto e do desejo.
O filme não seria o mesmo sem o desempenho da Arta Debroshi aqui em seu terceiro filme como intérprete. Ela impressiona a partir de uma máscara que traduz os sentimentos, mesmo que a pessoa em foco, no fim de contas, sinta a ambigüidade e, como referi acima, fique no ângulo do “no trespassing” sobre Lorna. A exemplo: são significativos os planos em um bar onde ela é forçada a dançar com o russo que lhe destinam para segundo marido. Ao se levantar da mesa e sair à pista com ele, ora em close, ora em plano médio, seguindo-se o momento que fala de sua suposta gravidez, tudo se concentra mais nas expressões do que nas palavras. E o filme inteiro é trabalho nas imagens. A câmera se movimenta de uma forma tão singela que o espectador, acompanhando a trama, nem sabe distinguir o perfil das tomadas, sentindo apenas os cortes bruscos.
Cotação: **** (Muito Bom)
Luzia Miranda Álvares
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