quarta-feira, 13 de maio de 2009

CINEMA, LITERATURA E MÚSICA EM "MORTE EM VENEZA"


Luchino Visconti (1906/1976) foi mestre em adaptar obras literárias para o cinema, imprimindo grandiosidade operística e intimismo para as obras de Giuseppe Lampedusa (O Leopardo, 1964), Thomas Mann (Morte em Veneza, 1971) e Gabrielle D’Annunzio (O Inocente, 1976).
Na Literatura os leitores embarcam numa viagem de operações semânticas e sintáticas, devidamente materializadas em palavras, ao mesmo tempo em que o texto aprofunda a noção de tempo e refluxo da memória. O Cinema apresenta a imagem pronta, com várias possibilidades intersemióticas ao analisar o texto adaptado através de planos, contra planos, planos-seqüência, lentes, marcação de atores, iluminação, sonoplastia entre outros elementos, estendendo formas literárias e visuais a um público indiscriminado. Adaptações são portanto, procedimentos artísticos na esfera da indústria cultural que apropriam e re-elaboram obras consagradas para outros meios.
“Morte em Veneza” (1971) subverte e reforça os valores da tradição, projetando novos significados para públicos heterogêneos, produzindo novas sensações e sentidos, ou seja, amplia o raio de ação provocado inicialmente por meio do texto literário em nome da dimensão visual marcada pelo rigor. São imagens em movimento, música e palavras integradas ao processo de narração, longe das meras adaptações obedientes que suprimem o texto literário à cartilha de planos curtos e diálogos rápidos e excesso de edição que marcam o cinema contemporâneo.
Com o Pós-neo-realismo, os temas sociais abrem espaço para o mal estar da contemporaneidade, agora saturada de esquemas binários oferecidos pela ideologia ou religião, impresso no celulóide por meio da instabilidade de sentimentos, traição da memória, reflexão estética, amor, incomunicabilidade, morte, vida, Deus e sua ausência.
Filmado no início dos anos 70, época em que o Pós-neo-realismo já se tinha se imposto como uma nova ordem estética entre os egressos do movimento Neo-realista (Visconti, Fellini, Antonioni, entre outros), “Morte em Veneza”, realizado antes de “O Estrangeiro” (este incompreendido na ocasião de seu lançamento num ambiente ainda permeado por dualismos ideológicos), faz parte da chamada trilogia germânica, marcada por obras absolutas como “Os Deuses Malditos” (1969) e Ludwig (1973).
Num estudo destinado aos cristais em decomposição eleitas pelo filósofo Gilles Deleuze em “Imagem Movimento”, a obra de Visconti se encaixa perfeitamente em várias categorias, como o cristal sintético, o processo de decomposição do cristal e o tarde demais.
O cristal sintético deleuziano se expressa no mundo aristocrático no sentido intelectual e social. Sintético, pois sendo aristocrático está fora da história, com suas leis próprias, que acossam pessoas que se cercam da produção artística e seus inevitáveis desdobramentos em que uma corrente estética tenta se sobrepor à outra. Gustav von Aschenbach invoca a liberdade financeira como um privilégio “natural” de família, assim com a mobília, cristais, prataria e outros elementos simbólicos das famílias abastadas em contraposição ao céu púmbleo, o avanço do cólera e a água pútrida dos canais de Veneza.
A decomposição do cristal se instala com o aniquilamento de todas as esperanças anuladas pelas armadilhas e impoderabilidade do destino que afeta a lucidez de Aschenbach, no filme, por meio da liberdade criativa, devidamente transposto de escritor (literatura) para músico (adaptação cinematográfica) no casamento perfeito entre Cinema, Literatura e Música, que tem como trilha o Adagietto ( Sinfonia N°5), de Gustav Mahler. Decadência, morte e necessidade de esquecimento. Penetração de um tempo sem saída. “O cristal não é separável de um processo de opacificação que agora triunfa em cores sepulcrais (DELEUZE, 1990, 177).
Em “Morte em Veneza”, a idéia ou revelação crepuscular do garoto Tadzio chega tarde demais para a ausência de vida e sensualidade na música de Aschenbach, embriagado pela procura da beleza, da inspiração, da paixão, do desejo carnal (seje ele qual for) à mercê dos jogos do destino, das gargalhadas dos deuses. A beleza como uma aparição, uma surpresa no semblante do maestro diante da androginia e seus derradeiro adeus á compustura, entrega total do delírio, perda do raciocínio concreto.
As tomadas longas e contemplativas como princípio de organização, melancolia e desorganização dão forma a esta obra-prima absoluta que marca o apogeu do cinema italiano no século XX. Depois Visconti encerra a tilogia germânica com o grandioso “Ludwig” (1973), em que sofre um ataque cardíaco que o prende numa cadeira de rodas. A tenaciade do conde vermelho que dizia preferir os doces e os livros às drogas ainda rendeu mais duas obras para o a história do cinema mundial: “Violência e Paixão” (1974) e “O Inocente”.

Augusto Pacheco

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