Scorsese e o sonho de Méliès
No começo do século passado, um homem assistiu a uma exibição de um trem, que parecia sair da tela para esmagá-lo, e teve a ideia de construir sonhos. Ele era ilusionista, e criou a magia do cinema. Seu nome era Méliès, e em aproximadamente 15 anos, ele realizou 500 filmes como diretor e ator e desenvolveu a sétima arte. Quase um século depois, seu legado é a força motriz do filme que pode consagrar Martin Scorsese nos Oscars – o genial diretor concorre a 11 estatuetas no próximo dia 26.Mas o que Méliès tem a ver com Hugo (Asa Butterfield), um garoto orfão, que, em 1931, mora na Estação Central de Paris, onde trabalha dando corda nos relógios?
A obra literária de Brian Selznick (neto do produtor David O. Selznick) que inspirou A Invenção de Hugo Cabret, já era em parte, uma homenagem aos primórdios do cinema através da (re) descoberta do legado de Méliès, e parte de uma estrutura que se assemelha a de um roteiro. Essa, digamos, ‘facilidade’ na hora de adaptar para a telona não teria resultado positivo se não fosse a junção do talento do roteirista John Logan com a genialidade de Martin Scorsese, que utilizou a tecnologia 3D totalmente a serviço de sua obra e não como um recurso supérfluo.
Ao longo da narrativa, nós, através dos olhos de Hugo, somos apresentados ao cinema de Méliès e o vemos por dentro – como as produções, os efeitos e os enredos oníricos eram criados pelo francês. A base da criação era situada num estúdio envidraçado – para permitir que a luz do sol penetrasse e fosse utilizada como iluminação – onde, ao lado da companheira e musa Jeane D’Alcy, ele dava asas a imaginação.
Méliès foi o primeiro a utilizar storyboards (desenhos) para projetar suas cenas , inventou a trucagem, ou seja, criou os efeitos especiais filmando em alta ou baixa velocidade e tentando diferentes maneiras de expor o negativo. Chaplin o chamou de o alquimista da luz e o americano D.W.Griffith disse que tudo o que tinha feito devia a ele, que teve como sua obra mais emblemática Le voyage dans la Lune (1902). Com a chegada da guerra, seus filmes, que envolveram em fantasias crianças e adultos, haviam perdido o sentido. E o pioneiro do cinema, acabou esquecido.
É o encontro dele com Hugo – certamente inspirado no sofrido David Cooperfield, que ganha uma citação no filme – um menino que herdou do pai o ofício de relojoeiro, que vai mover as engrenagens da história. Hugo alimenta a esperança de consertar seu único bem, um brinquedo. O brinquedo em questão é um boneco prateado, um autômato, o único bem que possui. E é roubando peças do relojoeiro da estação, Papa Georges (Bem Kinsgley), que Hugo pretende consertar o boneco, mas falta uma coisa: uma chave em forma de coração.
Esse grande mistério, que irá começar a se desnudar perante os olhos inocentes de menino e da nova amiga, Isabele (Chloe Moretz). Para o menino, o autômato irá revelar uma mensagem do pai (Jude Law), que morreu num incêndio no museu. A partir das peças do quebra cabeças que vão encontrando, os dois mergulham numa incrível aventura, onde conhecerão, através do livreiro (Christopher Lee), a biblioteca da cinemateca francesa e os tesouros escondidos por lá.
Mas as histórias da família Cabret e do mágico cineasta se interligam através do brinquedo, que fará as crianças descobrirem a sétima arte, numa jornada emocionante. E quem melhor do que, no mundo real, um cineasta apaixonado por filmes e artistas como Buster Keaton, Douglas Fairbanks, Clara Bow para contar, de uma forma onírica e fabulosa, essa história em forma de imagens?
Howard Shore constrói uma trilha sonora inspiradora. Emocionante, aventuresca nos momentos de grande apreensão, e encantadora quando Hugo e Isabelle mergulham no mundo do cinema. Scorsese, disse em diversas entrevistas reconhecer muito de si próprio em Hugo, uma criança cuja vida ganhou mais significado após encontrar todas as peças que faltavam, após ter contato com o cinema, com as possibilidades de uma vida menos ordinária e mais mágica.
“De que matéria são feitos os sonhos?” Hugo pergunta, em certo momento. Para dar mais dinamismo à trama, ele é perseguido pelo guarda da estação (Sacha Baron Choen), que numa – outra – homenagem chapliniana, morre de amores pela florista (Emily Mortimer), mas não tem coragem de se declarar por conta da perna defeituosa, cujas engrenagens que a sustentam vivem fazendo um barulho horrível.
Ele próprio, um órfão, persegue Hugo para que ele possa ter ‘uma família’. E esse filme é sobre descobertas tão caras, que é impossível contar as lágrimas. Scorsese construiu uma magnífica obra sobre o poder da arte como matéria dos sonhos e sua capacidade de transformar destinos. E mesmo que a academia hollywoodiana não premia essa obra em detrimento de outro filme que celebra o cinema (O Artista), as platéias de todo o mundo estão aceitando o convite de Scorsese para apreciar e viver essa fábula fascinante.(Lorenna Montenegro)
quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012
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